sexta-feira, 19 de abril de 2019

As chefes indígenas que estão protegendo a Amazônia


Escondidas entre a densa floresta amazônica estão as habitações simples feitas de folhas de palmeiras dos caiapós. Seus vilarejos se espalham ao longo do Rio Xingu, alguns tão remotos que até os anos 50 os caiapós viviam quase sem contato com o mundo exterior.

Estima-se que mais de 8.500 caiapós vivem em comunidades numa área de mais de 11 milhões de hectares nos estados do Pará e Mato Grosso — a maior área de floresta protegida por uma tribo no mundo.

Nas últimas três décadas, as comunidades caiapós se tornaram cada vez mais expostas ao mundo exterior, trazendo grandes mudanças na estrutura social da tribo. Uma das mudanças mais recentes e inesperadas tem sido o surgimento de chefes mulheres, que agora estão no comando de vilarejos espalhados por um grande pedaço da floresta amazônica.

Tuire é a chefe do vilarejo Kapran-Krere. Em maio último, o fotógrafo Pinar Yolacan a visitou lá. Com ajuda de um tradutor, Tuire disse a Yolacan: "Sou a terceira geração de liderança; meu tio e o pai dele eram líderes da nossa comunidade. Quando meu tio morreu e não havia ninguém para tomar o lugar dele, decidi lutar pela posição. Mesmo sendo mulher, eu já estava estudando com meu tio e fui treinada por ele."

Houve alguma resistência da comunidade a ter uma mulher como líder? "Não. Minha comunidade me respeita."

Tradicionalmente, os papéis dos caiapós são divididos entre gênero e idade. Mulheres são consideradas tão importantes quantos os homens na sociedade — elas são responsáveis pelos rituais de pintura corporal dos caiapós, por exemplo —, mas a agora as mulheres estão tomando papéis que antes eram reservados apenas aos homens.

Chefes como Tuire estão à frente de protestos contra desmatamento e mineração ilegais, e já se provaram líderes valiosas e porta-vozes apaixonadas e corajosas.

Também em maio, o New York Times publicou uma reportagem perturbadora sobre o aumento da violência contra tribos indígenas na Amazônia, depois da manchete sobre um ataque de madeireiros contra um grupo de aldeões que feriu 22 pessoas na região norte.

Bephnhoti — cujo "nome branco" é Amaury — é o porta-voz da Floresta Protegida, uma ONG indígena que representa 17 comunidades caiapós. Ao falar com a VICE, do quartel-general da FP em Tucumã, Bephnhoti explicou: "No passado todos os chefes eram homens; os homens dominavam os vilarejos, as comunidades. Mas hoje, como nas cidades, os papéis das mulheres estão se aproximando dos dos homens".

Agora são três chefes mulheres no total, incluindo Ngreikamoro no vilarejo de Aukre. Bephnhoti está claramente impressionado com ela. "No dia em que se tornou chefe, ela fez um discurso dizendo que iria se comprometer com o diálogo com outros vilarejos caiapós, para evitar as pequenas brigas internas que estamos sempre tendo. Ela quer que todo mundo viva bem e se dê bem com os outros", lembra ele. "Ela quer garantir que todos os vilarejos estejam unidos para lugar contra as ameaças exteriores."
Desmatamento no Mato Grosso. Foto por Pedro Biondi/Abr via Wikimedia Commons
                     
União não é algo fácil de conseguir. O modo de vida remoto dos caiapós — além do fato de que muitos vilarejos só são acessíveis com ajuda de avião e habitados por pessoas que não falam português ou sequer têm conhecimento do "homem branco" — significa que é muito difícil atrair atenção para suas questões e a batalha atual contra desmatamento e mineração ilegais que invadem a fronteira de quatro mil quilômetros de suas terras.

O trabalho da FP é apoiar a comunicação entre os chefes dos vilarejos e o mundo exterior, ajudar com a administração, fomentar o desenvolvimento sustentável e o financiamento para que os vilarejos estejam melhor equipados para se defender. Monitoramento e controle territorial é outra preocupação, disse Bephnhoti. "Recebi uma mensagem de um dos chefes de que um fazendeiro vizinho está espalhando veneno nos limites das terras caiapós, para matar a floresta e ter mais pasto para seu gado".

Mineração e formação de pastos ilegais são lugar-comum há décadas, mas há novas ameaças perturbadoras para comunidades como as chefiadas por Tuire e Ngreikamoro — dessa vez ameaças sancionadas pelo governo.

Com similaridades marcantes com o caso da Reserva Sioux Standing Rock nos EUA, o governo está sendo pressionado por grandes corporações e proprietários de terra que querem um pedaço lucrativo da Amazônia. Tramita no Legislativo um projeto de emenda constitucional (PEC) que transfere ao Congresso a decisão final sobre a demarcação de terras indígenas, territórios quilombolas e unidades de conservação no Brasil. Atualmente, somente o Poder Executivo, e seus órgãos técnicos, como a FUNAI, pode decidir sobre essas demarcações. A situação é similar à de Trump que forçou o avanço do oleoduto Dakota Access, enquanto os caiapós podem ver seus direitos às terras retirados pelo governo.

"Sou apenas uma mulher, uma guerreira, uma combatente, mas eles precisam me respeitar. Esta é a minha natureza, esta é a minha terra."

A PEC 215 estabelece que apenas terras ocupadas por indígenas desde 1988 serão consideradas reservas. Qualquer terra da qual eles tenham sido expulsos antes dessa data não serão elegíveis.

"Sinto que a discriminação contra as comunidades indígenas é ainda maior hoje por causa das palavras do presidente Temer e de pessoas de seu governo, que falam mal dos indígenas e dizem que não merecemos as terras que temos", disse Tuire. "Ele está apoiando a PEC 215, uma lei para remarcar os territórios indígenas, que vai deixar os fazendeiros e os mineradores usarem nossas terras."

Segundo Barbara Zimmerman, ecologista e diretora do programa caiapó do Fundo Internacional de Conservação do Canadá, essa última legislação é um desastre para todos os grupos indígenas e o meio ambiente que eles protegem. "As pessoas têm que entender que os indígenas brasileiros protegem grandes áreas de floresta no Brasil. Se essas leis forem aprovadas, se as indústrias tiverem permissão para entrar nas terras indígenas, será um desastre para o mundo, não só para o Brasil."

"A situação é preocupante", ela acrescenta. "A pressão pelas terras deles está pior a cada ano — de gente que quer ouro, madeira ou terras — e eles estão lutando muito para proteger o que têm."
Tuire se tornou chefe de seu vilarejo depois da morte do tio. Foto por Pinar Yolac
                               
O modelo de conservação do estilo de vida caiapó é o que torna a existência deles tão vital — não só para o Brasil, mas para uma questão ambiental mais ampla. Em 2016, o desmatamento na Amazônia aumentou 29%. "O que as pessoas precisam entender é que a floresta é o lar deles: é o que eles protegem, é o que fornece seu sustento, é a base de sua cultura. Eles não protegem a floresta do mesmo modo como os ambientalistas ocidentais pensam em proteger a natureza, eles estão protegendo sua casa. Eles não têm uma separação entre eles e a natureza — eles são parte da natureza."

Um dos protestos mais famosos dos caiapós aconteceu na cidade portuária de Altamira em 1989, contra um projeto de uma mega represa no Rio Xingu. A publicidade internacional que se seguiu obrigou o Banco Mundial a abandonar o financiamento do projeto. Protestos e atenção da mídia global podem ser as ferramentas mais poderosas à disposição dos caiapós, mas como o caso de Standing Rock provou, isso não é suficiente. Organizar viagens de membros da tribo do Pará para Brasília também é caro, e com recursos limitados, os protestos indígenas estão se tornando menores e menos frequentes.

Durante o projeto da represa, Tuire confrontou o então líder da FUNAI diretamente. "Fui lá com a minha faca, que ainda guardo em casa, e coloquei na cara dele para ele parar de falar mal do nosso povo. Sou apenas uma mulher, uma guerreira, uma combatente, mas eles precisam me respeitar. Esta é a minha natureza, esta é a minha terra."

Essa atitude "guerreira" dos caiapós é o que mais impressiona Zimmerman. Eles protegem suas terras e seu modo de vida — às vezes com violência — contra as investidas do capitalismo, e se recusam a ceder apesar da pressão cada vez maior e dos recursos limitados.

Nos próximos meses, isso significa que os líderes das comunidades tribais terão um papel central. "Fico um pouco emotiva quando olho a natureza. Ela é sagrada para mim", disse Tuire. "Todas essas árvores existem não apenas para nós, os indígenas, mas para todos sobreviverem. Elas nos dão o ar para respirar, o oxigênio que precisamos. Há tantos tipos de criaturas aqui; pássaros, papagaios, macacos, tatus... Se as pessoas continuarem a destruir a natureza, onde esses animais vão viver? É por isso que não deixo ninguém destruir a natureza."

Uma coisa é certa: Tuire não vai desistir. "Vou voltar para Brasília, para o Congresso Nacional, e na presença de todas aquelas pessoas do governo, eles vão ter que me ouvir dizer de novo que não podem tirar nossas terras e fazer isso com os indígenas da comunidade caiapó."

"Sempre fui uma guerreira pelos meus direitos e os direitos do meu povo."


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Esta matéria foi originalmente publicada no Broadly .

Dia do Índio | Relembre ataques de Bolsonaro aos povos originários

A Constituição de 1988 estabeleceu que os territórios indígenas no Brasil fossem demarcados pelo governo federal em até cinco anos / Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil
Em quatro meses, Bolsonaro coleciona posicionamentos ameaçadores à sobrevivência de comunidades tradicionais

Emilly Dulce
Brasil de Fato | São Paulo (SP),19 de Abril de 2019

Nesta sexta-feira (19), é celebrado o primeiro Dia do Índio sob o governo de extrema direita de Jair Bolsonaro (PSL), marcado pela criminalização de lideranças, pelo sucateamento da Fundação Nacional do Índio (Funai) e pela estruturação de uma política anti-indígena.

Para jogar luz nos 519 anos de luta e resistência dos povos indígenas do Brasil, neste mês de abril, ocorre uma série de mobilizações para a articulação de estratégias e de visibilidade às reivindicações dessa população. Alvos de constantes violências que ceifam vidas e territórios tradicionais, os povos originários ainda batalham pela demarcação de suas terras, pela garantia de direitos básicos e pela preservação de tradições ancestrais.

Em menos de quatro meses de mandato, relembre alguns dos ataques do governo Bolsonaro aos povos originários.

Bolsonaro retira da Funai a demarcação de terras indígenas


Uma das principais atividades executadas pelo órgão indigenista nos últimos 30 anos era a identificação, delimitação, demarcação e registro de terras indígenas no país. Na prática, a regularização fundiária passa agora às mãos dos ruralistas, adversários dos interesses dos indígenas em diversos estados.

Em edição extra do Diário Oficial da União, Bolsonaro delega a tarefa de demarcar novas terras indígenas ao Ministério da Agricultura, chefiado por Tereza Cristina (DEM), até então líder da bancada do agronegócio na Câmara e conhecida como "musa do veneno". Em um ano, os ruralistas derrubaram dois presidentes da Funai. 

A equipe de transição de Bolsonaro já havia anunciado que o órgão seria transferido do Ministério da Justiça para o comando da pastora evangélica Damares Alves, atual ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Agora, perde a capacidade das demarcações, submetida a outro ministério.

A Constituição de 1988 estabelece que os territórios indígenas no Brasil sejam demarcados pelo governo federal em até cinco anos. Não foram. Bolsonaro afirma que, se depender dele, não haverá mais demarcação de terra indígena no Brasil, mas garantiu que suas decisões serão tomadas de acordo com a lei.

Conforme dados da Funai, cerca de 130 terras indígenas estão em processo de demarcação no Brasil e, portanto, poderiam ser afetadas pela medida planejada por Bolsonaro. Outras 116 estão em estudo para aprovação como terra tradicional e mais 484 áreas são reivindicadas para análise. 

Assessor do Ministério da Agricultura comandou operação que matou indígena no MS

O delegado da Polícia Federal (PF) Marcelo Alexandrino de Oliveira tornou-se assessor da Secretaria Especial de Assuntos Fundiários (SEAF) do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, chefiado atualmente por Luiz Antônio Nabhan Garcia, presidente da União Democrática Ruralista (UDR).

Em maio de 2013, Oliveira comandou uma operação de reintegração de posse na fazenda Buriti, em Sidrolândia (MS), que resultou na morte do indígena Oziel Gabriel, de 35 anos, atingido por balas 9mm. A ação também deixou outros 21 indígenas do povo Terena feridos. 

Na época da operação, o então delegado e agora assessor especial do ministério sugeriu que o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) – entidade de defesa dos povos indígenas fundada em 1972 – estaria organizando e incentivando “invasões” de terra e, por isso, seria responsável pela morte de Oziel. O inquérito aberto para investigar a operação concluiu que os tiros que assassinaram o indígena Terena foram disparados pela Polícia Federal.

Permissão ao armamento e mais mortes no campo 

Em 15 de janeiro, o presidente Jair Bolsonaro assinou um decreto que facilita a posse de armas de fogo no Brasil e estende o prazo de validade do registro de armas de cinco para dez anos, uma de suas principais bandeiras durante a campanha. A medida foi publicada em edição extra do Diário Oficial da União e teve efeito imediato.

Durante o evento no Palácio do Planalto, que contou com a presença de ministros e de integrantes da chamada bancada da bala, Bolsonaro afirmou que o decreto trata apenas da posse de armas e que outras medidas podem ser feitas pelo Legislativo, como o porte em zonas rurais, defendido por vários de seus apoiadores, como o ministro-chefe da Casa Civil Onyx Lorenzoni (DEM). O argumento é de que seria uma forma de combater a violência.

Controverso, o discurso é fortemente combatido por movimentos populares que atuam no meio agrário. Para o movimento indígena, a liberação do porte de armas no campo significa carta branca para matar e deve agravar ainda mais os conflitos entre latifundiários e povos tradicionais, frequentes em diversas regiões do país.

Lançado no final do ano passado, com dados de 2017, o Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil, publicado anualmente pelo Cimi, constata o aumento sistêmico e contínuo da violência contra os povos originários.

Pelo menos 20 conflitos relativos aos direitos territoriais foram contabilizados pelo órgão em dez estados, além do aumento no número de casos em 14 dos 19 tipos de violência sistematizados no relatório. A apropriação das terras indígenas é um dos principais vetores dessas violações.

“A invasão e o esbulho possessório alastraram-se como pólvora sobre os territórios e ameaçam a sobrevivência de muitos povos, inclusive os isolados. Está claro que o Brasil foi tomado de assalto, feito refém de interesses privados da elite agrária, ‘agraciada’ com novas ‘capitanias hereditárias’, que são distribuídas em troca da morte dos povos que habitam os territórios”, avaliou o secretário executivo do Cimi, Cleber Buzatto, em seu artigo de apresentação do relatório. 

As informações do Cimi também evidenciam a gravidade dos registros de suicídio (128 casos), assassinato (110 casos) e mortalidade na infância (702 casos), além da omissão e conivência dos Três Poderes do Estado.

Exploração mineral em terras indígenas e especulação imobiliária

Além de cessar os processos de demarcação em andamento, Bolsonaro também ameaçou rever algumas terras indígenas já demarcadas, como a Raposa Serra do Sol, em Roraima, que abriga em torno de 20 mil indígenas. O território foi homologado em 2005 e, em 2009, o Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou a decisão do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). A região possui terras férteis e reservas minerais estratégicas, como de nióbio e urânio, o que desperta o interesse do agronegócio e de mineradoras. 

Bolsonaro defende que as terras indígenas sejam abertas para empreendimentos de infraestrutura e atividades de mineração. No entanto, a Constituição proíbe a construção de projetos que tenham impacto direto em territórios indígenas. “A decisão transitou em julgado. Foi uma decisão histórica. Para os índios, é direito adquirido. Depois que o Estado paga uma dívida histórica, civilizatória, ele não pode mais estornar o pagamento e voltar a ser devedor”, disse o ex-ministro do STF Ayres Britto ao jornal O Globo.

Em entrevista ao El País, Sonia Guajajara, coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e ex-candidata a vice-presidenta na chapa de Guilherme Boulos (PSOL), ressaltou a importância de mobilização popular contra as medidas do novo governo. "Bolsonaro quer entregar a terra ao agronegócio, à mineração e à especulação imobiliária. A gente teme ter que pagar com a própria vida, mas não vamos recuar”, afirmou.

Edição: Aline Carrijo